A farsa?

Obra de Damien Hirst: um tubarão conservado em formol

Foto: Stephen Foster

“Mesmo assim, pessoas razoavelmente cultas ainda não fazem distinção entre arte moderna e contemporânea, nem suspeitam que as relações entre o artista, o mercado e as instituições mudaram radicalmente. É bem provável que um cidadão comum, de cultura mediana, continue associando arte à capacidade de exprimir e significar, dois verbos que caíram em desuso.
Isso acontece, em parte , porque o espectador comum deixou de ter importância para o sistema, ou melhor: da mesma forma que a função da crítica foi anulada pelos gestores do mundo da arte — o crítico só serve hoje para testemunhar, não para julgar — o papel do cidadão também foi reduzido ou mesmo eliminado.
Ao crítico, cabe hoje chancelar teoricamente a obra que é designada como arte pelo sistema, num servilismo patético. Como, na verdade, o crítico nada mais era do que um espectador esclarecido, informado, qualificado para julgar esteticamente a obra, o que naturalmente tinha impacto na carreira e na cotação do artista, o mesmo movimento que tira de cena o crítico independente dispensa o espectador com opinião: ao público resta apenas aceitar e consumir passivamente os signos daquilo que lhe é vendido como arte.
(…) Coroando muitas vezes a ação entre amigos que se tornou a arte, o Estado também dá sua forcinha, pagando viagens a feiras comerciais e delegando aos departamentos de marketing das grandes corporações privadas, via leis de renúncia fiscal, a função de decidir em que tipo de arte merece ser investido o dinheiro público.
O paradigma moderno se caracteriza por essa conspiração harmoniosa, pela unanimidade e pela autorreferência.”

Até o século passado, as vanguardas artísticas costumavam nascer de ruprturas e movimentos de contestação. O impressionismo foi sistematicamente rejeitado nos grandes salões. A arte acadêmica era a preferência oficial. O cubismo rompeu as formas clássicas de representação do real e a arte conceitual de Marcel Duchamp queria contestar o sistema vigente. O urinol alçado à categoria de objeto de arte era uma provocação e um estímulo à reflexão sobre o papel do artista e da própria arte na sociedade, naquela época e naquele contexto. A apropriação de Duchamp aconteceu nos anos 1910. O que Luciano Trigo procura escarafunchar em A grande feira, como mostra o trecho acima, é como a arte contemporânea se dissociou dos valores de ruptura que marcaram as vanguardas artísticas em todo o planeta e se associou ao sistema oficial para ganhar legitimidade e mercado. Trigo, que é jornalista e tradutor, se diz movido por uma curiosidade jornalística. Fez um livro corajoso. Há muitos porquês em A grande feira. Hoje, o autor defende, o maior sonho de qualquer artista é ser absorvido pelo sistema. Para isso basta que entre para um círculo, uma teia de contatos e relações que nada tem a ver com a qualidade ou conteúdo de sua produção. A crítica não questiona, apenas endossa. E a curadoria, de tão autoral, está à beira de virar artista também. Trigo é radical. Exemplifica com exemplos realmente muito bons. Vai buscar na Inglaterra o fenômeno Damien Hirst para mostrar como se fabrica um artista contemporâneo. É sabido de todo o mundo da arte que Hirst nasceu porque o empresário e colecionador Charles Saatchi assim o quis. Multimilionário, Saatchi conseguiu montar uma rede que incluía mídia, colecionadores, crítica, museus e um grande prêmio de arte — nada mais que o Turner Prize — para sustentar o que chamou de Young British Art. Com todos na mão, conferiu  prêmio  e valor a Hirst, que não costuma trabalhar nas próprias obras, é autor apenas das ideias. Aí está um dos pontos mais interessantes do livro. Quanto vale uma ideia? Quanto vale um quadro de Damien Hirst pintado por uma artista anônima de sua equipe? O que se paga, na realidade? Uma grife? Um certificado? É um caso muito específico, mas Trigo consegue, a partir dele, expor um cenário bastante comum.É verdade que Hisrt se torna uma figura um tanto repetitiva em A grande feira. E que o autor se mantém seguro atrás de exemplos estrangeiros e não encara o cenário nacional. Uma menção a Tunga e outra à Arco 2008,  quando o governo brasileiro investiu R$ 2,6 milhões para levar galerias brasileiras a Madri, são as únicas críticas ao mundo da arte no Brasil. E também não se pode deixar de reparar um pouquinho de conservadorismo em certas posturas.  Mas vale a leitura.

1 comentário

Arquivado em Arte, Ensaios

Fragmentos de um refugiado

bosnia

 Arrumei minhas malas e me despedi de Will – havia lágrimas de verdade em seus olhos ao dizer: – Eu sei que seu velho vai focar bem. – tomei o trem noturno para Varsóvia e voei para Chicago, via Frankfurt, envolto numa dor surda, meus pesadelos, que eram minha única diversão, repletos de remorso. O enterro foi no dia da minha chegada – ele morreu quando eu estava na loja duty-free do Aeroporto de Frankfurt, comprando carinhosamente algumas garrafas de vodca Absolut para serem consumidas durante o velório. Vindo diretamente do aeroporto, me sentei na primeira fila da funerária Muzyka com minha mãe, que soluçava e tremia, vestida de preto fechado, enquanto meu pai jazia num caixão aberto e seus companheiros de guerra – velhos em ternos de cores inexpressivas cada vez mais apertados neles, exalando um fedor de próstatas carcomidas – seguravam bandeiras ucranianas e discursavam sobre a lealdade e a generosidade de meu pai, sobre seu amor pela Ucrânia, sobre seus últimos instantes de sublima alegria ao ver a pátria livre.

O trecho acima contém os indícios necessários para compreender a vida de Pronek, um bósnio filho de ucraniano que cresceu em Sarajevo e acaba exilado nos Estados Unidos por conta da guerra que opôs bósnios, sérvios e croatas. Pronek não esmiuça detalhes mórbidos do conflito que deixou 250 mil mortos e 1,5 milhão de refugiados. O personagem criado pelo escritor bósnio Aleksandar Hemon para o romance As fantasias de Pronek é um bem humorado viajante que recorre a fragmentos de lembranças para contar sua história de refugiado. Hemon não nega as referências autobiográficas do romance. Ele mesmo deixou a Bósnia natal em 1992, quando realizava um intercâmbio nos Estados Unidos e foi impedido de voltar para casa devido ao conflito. Acabou ficando em Chicago, de onde escrevia matérias para jornais bósnios, tarefa que perdeu o sentido quando a guerra tomou proporções dramáticas. O escritor decidiu então escrever primeiro contos, depois romances. Tinha 28 anos e também decidiu que escreveria em inglês, embora as aulas do idioma na faculdade em Sarajevo não fossem o suficiente para dar início à carreira de escritor. Mas Hemon deu conta e ganhou prêmio. Para dar ênfase à fragmentação da memória de Pronek, o autor decidiu narrar o livro a partir de vários pontos de vista. Cada momento da vida do personagem é contado por um narrador diferente, o que confere ao livro uma dinâmica curiosa e tão entrecortada quanto a vida de refugiado.

2 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Estrada econômica

trevor-manternachFoto: Trevor Manternach

“Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para luz cinzenta lá fora e ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. Os cães cegos do sol em sua corrida. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dos animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.”

 É um risco descrever o enredo de A estrada, de Cormac McCarthy, sem que lembre o resumo de um filme apocalíptico de Hollywood. Tão arriscado quanto perigoso, porque se tem uma coisa que McCarthy não faz é investir em tom hollywoodiano, cheio de explicações para o inexplicável e de imagens excessivas para o inimaginável. E é nesses antônimos que A estrada se encaixa. Correndo o risco: pai e filho caminham por uma estrada num mundo devastado. Algo aconteceu e não sabemos o que foi. Restaram apenas cinzas, que cobrem o solo e ficam suspensas no ar. Sim, há coisas animalescas acontecendo ao redor. Canibalismo para sobreviver num planeta queimado e sem comida, escuridão permanente, ausência de humanidade como ainda conhecemos. Mas é na relação entre pai e filho, ambos sem nome, que McCarthy foca a narrativa. Antes de morrer, a mãe avisou o marido que o garoto era a única distância entre ele e a morte. É no apego a esse fio que a caminhada faz sentido. Eles não sabem para onde vão, nem o que buscam, mas o fato de continuarem buscando faz com que pareçam os únicos seres ainda humanos no cenário. E McCarthy não combina com Hollywood porque é simples, cru, direto no que quer explícito e econômico no que poderia tomar ares de espetáculo. Deixa ao leitor a liberdade de perceber (ou não) o horror da situação, mas nunca se aventura em descrevê-la e transformar A estrada em voyeurismo mórbido. Os diálogos curtos ajudam a velar e revelar. O livro, publicado em 2006, é a única ficção científica do autor, que escreveu também Onde os velhos não têm vez, origem do filme Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Coen. A estrada está a caminho em filme, mas não pelas mãos dos Coen, infelizmente.

1 comentário

Arquivado em Cinema, Romance

A psicologia de Gould

gould2

Talvez Gould fosse simplesmente um desses seres que não gostam que as coisas terminem, que olham o dia declinando como uma ameaça da qual fogem em uma sala de cinema, desejam as músicas não concluídas, freqüentam compositores for a de moda, escutam os latecomers (retardatários) do mundo, como os de Terra Nova, que chegaram quando nada maios acontecia para ali ficar para sempre, sem outro projeto que o de simplesmente durar, alongam suas frases, inextricável emaranhado, de incidentes em digressões, até que seja o ouvinte esgotado que perca o fio…

 A lição de Gould é uma lição de humildade. Há pianistas que prefiro: Lipatti, Richter, Sofronitzki. Guilels toca melhor que Gould o Dramatico da Sonata nº 3 de Scriabin, e Arrau o Concerto do Emperador, apesar da ciência sutil da desordem mental que Gloud demonstra, e sua maneira desconcertante de tocar os concertos.

Uma obra chega até nós sempre recoberta por camadas de gestos interpretativos, ou vestidas do vestido rígido da tradição. É preciso desnudá-la. Mas o iconoclasta não é aquele que estilhaça imagens para se distrair e gozar do belo desastre de seus pedaços esparsos. Ele quer que nada, e sobretudo não a imagem, o afaste de seu endereço divino.

Gould não era um surrealista com o mal da provocação, mas uma espécie de cátaro da música. Seu retiro foi um conseqüência com essa constatação: as salas não são o melhor lugar para escutar música, por causa da presença das imagens, e da ausência da solidão que elas implicam. O concerto lhe parecia imoral, porque a música, como Deus, não sofre da representação.

 

Glenn Gould – Piano solo, do psicanalista francês Michel Schneider, não é uma biografia comum. O autor não se amarra a cronologias ou documentos e dispensa o apego aos fatos. É um retrato muito pessoal e subjetivo de Schneider para um dos maiores pianistas do século 20. É para ouvir ao som da gravação de O cravo bem temperado, em que Gould solfeja ao fundo sua inevitável cantilena, sinal de que não gostava do piano, terror dos técnicos de som dos estúdios, brinde mítico para os aficcionados pelo canadense. Assim friamente, a vida de Gould dificilmente renderia uma biografia. Personagem avesso ao contato social, decidiu se retirar das salas de concerto muito cedo. Preferia o estúdio, no qual podia controlar todos os detalhes das gravações. Não gostava de gente por perto, se isolou inúmeras vezes no norte do Canadá, tinha fobia de contato físico por achar que pegaria doenças, calçava as mãos com luvas para se proteger e encenava verdadeiros rituais de relaxamento dos braços em água quente antes das gravações. Da vida amorosa, pouco ou nada se sabe. Mas Gould era figura extraordinária e o retrato de Schneider não se perde em detalhes dispensáveis. Depois de identificado como o maior intérprete de Bach, ainda no início da carreira, Gould decidiu que a música ao vivo afastava o público ao invés de capturá-lo. Se retirou dos palcos e escolheu os estúdios de gravação como lugar seguro para a música. Ali podia controlar cada nota de seu dedilhado. Mas nada disso ganha destaque desmesurado no texto de Schneider, que prefere mergulhar na sua versão psicológica de Gould, pessoa que não conheceu mas da qual confessa sentir saudades. O autor também biografou, a seu modo, Baudelaire e Marilyn Monroe, mas apenas este último foi traduzido para o português.

1 comentário

Arquivado em Uncategorized

Luz em novembro

turner

 Imagem: The great western railway, de William Turner

 A memória acredita antes de o conhecimento lembrar. Acredita um tempo maior do que recorda, um tempo maior até do que o conhecimento imagina. Conhece lembra acredita em um corredor num longo frio despojado ressonante edifício de tijolos vermelhos escuros enegrecidos pela fuligem de mais chaminés do que a sua própria, plantado num terreno atulhado de cinza espalhada sem grama rodeado de construções industriais fumacentas e cercado por uma cerca de aço e arame de três metros como uma penitenciária ou um zoológico, onde em vagas erráticas aleatórias, com chilreios infantis pardalinos, órfãos em idêntica e uniforme sarja azul dentro e for a da recordação mas no conhecimento constantes como as paredes soturnas, as janelas soturnas onde na chuva a fuligem das chaminés adjacentes de um ano riscava como lágrimas negras.

      Difícil não sucumbir a William Faulkner. Luz em agosto, como vários romances do americano, conta histórias dos Estados Unidos profundo da década de 1920, época em que um negro não tinha autorização para entrar em qualquer lugar e que um protestantismo conservador exercia sua autoridade num raio muito maior que o da comunidade local. Uma mocinha grávida solteira, um velho serralheiro, um pastor e um mestiço filho de negro com branco são alvo da narrativa visceral de Faulkner, cujo mergulho na psicologia dos personagens pode levar o leitor a um abismo do qual não é fácil voltar. Não há linearidade no romance. Cada capítulo tem seu personagem, as histórias vão e voltam e é quando nos deixamos levar por esses cortes que podemos realmente penetrar no universo do escritor. E, na maioria das vezes, não é um universo de seres iluminados, embora Faulkner seja generoso o suficiente para fazer destes seres figuras muito humanas. O escritor nasceu no Mississippi e a cultura do sul sempre foi uma grande influência. Ler Luz em agosto no século 21 causa um deslocamento no tempo ainda maior que os cortes da própria narrativa. Em 1932, ano de publicação do romance, seria impossível imaginar um negro no comando do país.

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized

A cegueira

 “Porém, cada coisa chegará no tempo próprio, não é por muito ter madrugado que se há-de morer mais cedo. Os cegos da terceira camarata lado esquerdo são pessoas organizadas, já decidiram que vão começar pelo que têm de mais perto, pelas mulheres das camaratas da sua ala. A aplicação do método rotativo, palavra mais do que justa, apresenta todas as vantagens e nenhum inconveniente, em primeiro lugar, porque permitirá saber, em qualquer momento, o que foi feito e o que está por fazer, é como olhar um relógio e dizer do dia que passa, Vivi desde aqui até aqui, falta-me tanto ou tão pouco, em segundo lugar, porque quando a volta das camaratas estiver concluída, o regresso ao princípio trará uma indiscutível aragem de novidade, sobretudo para os de memória sensorial mais curta. Folguem portanto as mulheres das camaratas da ala direita, com o mal das minhas vizinhas posso eu bem, palavras que nenhuma disse, mas que todas pensaram, na verdade ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

      São linhas como as três últimas que fazem a leitura do livro de Saramago ser bem mais impressionante que a adaptação de Fernando Meireles para o cinema. As palavras de Ensaio sobre a cegueira, o livro, são mais sórdidas e descrentes que as imagens de Meireles. Só para ensaiar uma comparação, porque comparar linguagens tão distantes quanto a literária e a cinematográfica raramente resulta em sentenças sensatas. O problema é que no caso de Ensaio sobre a cegueira, o roteiro do filme é literalmente o livro. E quando se lê o livro após assistir o filme, fica difícil não casar as imagens evocadas pelas palavras do autor com as propostas pelo diretor. Mas o grande barato aqui é encontrar a narração de Saramago e sua viagem pela psicologia dos personagens. O egoísmo é a marca comum a todos os personagens, até mesmo à mulher do médico (ninguém tem nome no livro), a única capaz de enxergar após a cegueira atingir, inexplicavelmente, todos os humanos do planeta. Quando ninguém vê, tudo é permitido. E assim, no cenário criado pelo Nobel português, o ser humano vai se esvaindo no próprio egoísmo. Há eventuais lampejos de esperança. Há os malvados e não-malvados e todos podem escolher de lado querem ficar. O livre arbítrio existe, mas as decisões raramente são pautadas pela idéia de uma organização que depende da coletividade. Os não-malvados se escoram na mulher que enxerga, que hesita em contar que enxerga para não ficar sobrecarregada. Os malvados, obviamente, exercem sua maldade partindo do pressuposto de que suas fraquezas são as mesmas de toda a humanidade. Ironicamente e tarde demais, descobrem que existe entre os outros alguém que não compartilha da cegueira. Um erro de cálculo fatal para a maldade humana. Até os cães, na mundo cego de Saramago, podem ser egoístas, qualidade, não custa lembrar, exclusivamente reservada ao mundo dos homens.

2 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Rainha faminta

Execução de Maria Stuart em 1587, autor desconhecido

“Assim como poetas como Rimbaud ou músicos como Mascagni se esvaem completamente em uma obra genial e única, há mulheres que gastam em uma única paixão toda sua reserva de amor ao invés de reparti-la organizadamente pelos anos que lhes restam, coisa que as mulheres de natureza burguesa e moderada fazem muito bem. De uma só vez, essas mulheres, verdadeiros gênios da autodestruição, se jogam nas profundezas da paixão de onde não há volta. Desse tipo de amor que, por não temer perigo nem morte, merece ser chamado heróico, Maria Stuart será um exemplo perfeito, ela que experimentou uma única paixão na vida, à qual se abandonou até o fim, até a aniquilação total de si mesma”

       Maria Stuart era o cão. Foi proclamada rainha da Escócia antes de completar um mês de vida e passou o resto de seus 45 anos armando contra os protestantes e reivindicando a coroa da Inglaterra que repousava sobre a cabeça de sua prima Elisabeth. A Escócia, lá pelos meados do século 16, era assim uma terra de bandidos. A rainha não era das mais ricas e os lordes encarregados de protegê-la viviam em guerra e praticavam com muito esmero a deslealdade e a corrupção. Para completar, Maria Suart, defensora da fé católica, não tolerava ver a Inglaterra governada por uma protestante. O problema é que Maria metia os pés pelas mãos. Adolescente, casou com um rei francês para garantir mais uma coroa, mas perdeu tudo quando o garoto (sim, porque ela era bem mais velha) morreu. Voltou para a Escócia sem a coroa francesa e decidiu que tinha direito à inglesa. Se apaixonou desesperadamente por um moço de espírito fraco e influenciável e tudo desandou.

      Para resumir, Maria mandou matar o marido e casou com o assassino do próprio, uma paixonite irresponsável para uma rainha. Aos olhos das cortes católicas da Europa virou uma desmiolada e aos olhos dos lordes que a protegiam, uma doida. Acabou encarcerada pela prima Elisabeth e, numa última tentativa de conspiração, perdeu o que nunca teve, a própria cabeça, degolada por um facão num tempo em que a guilhotina ainda não facilitava as coisas. Foi tanta conspiração que, ao final, nenhuma corte séria prestava mais atenção aos apelos de Maria para tomar a coroa inglesa. Tanta conspiração que não poderia passar despercebida ao escritor austríaco Stefan Zweig.

      Aficionado por biografias (foram 16 no total), Zweig escreveu Maria Stuart em 1935, dois anos depois de Maria Antonieta. No Brasil, o livro foi publicado nos anos 1940 pela Editora Guanabara e as raras edições que ainda circulam estão em sebos e bibliotecas antigas. Uma pena para os leitores brasileiros. Zweig escolheu biografar duas rainhas de fama bastante complicada. Comete, talvez, o erro do biógrafo e se encanta por suas personagens com bastante sinceridade, mas deixa isso claro e segue pelo caminho de tentar humanizar a imagem construída pela história e pelos vencedores. Maria Antonieta, tal qual a herdeira dos Stuart, foi decapitada. A francesa entrou para a história como e perdulária que desovava a fortuna da coroa francesa nos ateliês de estilistas e cabeleireiros. A escocesa conquistou seu lugar como a louca conspiradora que se apaixonava pelos homens errados e nunca daria sua vida pelo povo, o mínimo que uma rainha podia fazer naqueles tempos. Duas injustiçadas pela história na visão de Zweig. Claro, com um crédito para Antonieta, figura intelectualmente muito mais interessante que sua xará da Escócia.

1 comentário

Arquivado em Uncategorized

A fase que nunca existiu

“Qualquer idiota pode pintar um quadro, mas só um homem sábio é capaz de vendê-lo” (Samuel Butler)

Foto: A ceia de Emaús

“A carta com o elegante cursivo de Bredius valia muito mais que o quadro que, por insistência de Boon, Han depositou no cofre do Crédit Lyonnais. A opinião de um único homem obrigaria todo o mundo da arte a aceitar sua falsificação como um Vermeer autêntico. O papel do crítico é crucial no mundo da arte – tanto hoje, no século 21, como da década de 1930. Apesar da proliferação de novos testes para autenticar velhos mestres – exames com infravermelho e ultravioleta, termoluminescência, espectrofotografia, datação por carbono e auto-radiografia -, ainda é o olho arguto do perito que faz a atribuição, pois, embora possam determinar a idade de uma tela, a composição dos pigmentos ou a natureza da base, os testes não conseguem determinar a diferença entre um Rembarndt e um Rubens.”

“A história, assim como a natureza, tem horror ao vácuo, e nesse terreno baldio floresceram fábulas e especulações. No capítulo sobre Vermeer de Noord – en Zuid-Nederlandsche schilderkunst de XVII eeuw, Hannema e van Schendel expunham uma teoria que inspiraria a Han sua maior falsificação. Diziam que, embora a produção de Vermeer fosse pequena, havia uma gritante disparidade de estilo e de tema entre Diana e suas companheiras, a primeira obra do mestre, e A leiteira seu primeiro trabalho maduro. No início da carreira, Vermeer pintou grandes quadros no estilo italiano, com as pinceladas largas e o característico chiaroscuro de Baburen e dos caravaggisti de Utrecht, muito diferentes da “serenidade de coração e nobreza de espírito” que caracterizavam a produção de sua maturidade. Nesse vazio, Hannema e van Schendel imaginaram um Vermeer desaparecido que um dia uniria as duas fases: afirmavam com segurança que, na juventude, o mestre de Delft pintara diversos quadros com temas religiosos, dos quais apenas sobrevivera um.”

 Han é Han van Meegeren, um pintor holandês que preferia criar telas à moda de Rembrandt e Rubens quando o mundo via nascer Picasso e o cubismo. Odiava arte moderna e venerava os mestres holandeses do século 16. Especialmente Jan Vermeer, o mestre de Delft. Han não conseguiu que a crítica dos anos 1930 olhasse seriamente para suas pinturas antiquadas, então decidiu ser Vermeer e inventou toda uma fase religiosa nunca pintada pelo mestre. Confeccionou três quadros falsos e conseguiu burlar o mercado e fazer com que suas pinturas fossem aceitas como autênticas. Durante quase uma década o mundo se deslumbrou com A ceia de Emaús e se surpreendeu com a fase “diferente” de um pintor misterioso e de produção escassa. Vermeer pintou menos de 90 quadros e Han tratou de aumentar a lista. Foi descoberto logo depois da Segunda Guerra e por pouco não vira o herói que salvou Vermeer dos nazistas. Sim, porque Han, um fascista que não escondia suas preferências, vendeu alguns dos quadros falsos para a elite nazista. E Frank Wynne, o autor do trecho acima, conta tudo em um texto saboroso no livro Eu fui Vermeer – A lenda do falsário que enganou os nazistas. Wynne é jornalista, irlandês e crítico contundente do mercado de arte. Lamenta que os balcões de compras das galerias e grandes leilões sejam freqüentados por compradores mais interessados em nomes do que em obras. É a ciranda financeira desse mercado que permite falsificações como as de Van Meegeren. O mercado, ávido pelo novo e pouco atento ao conteúdo, produz monstros. Até hoje. Esta semana o inglês Damien Hirst subverteu a lógica dos leilões de arte e tapeou sua própria galeria. Foi ele mesmo à Sotheby´s de Londres vender seus trabalhos. Hirst, da mesma geração de Mathew Barney (o marido da Björg), ganhou estatus no mercado quando expôs em galeria uma vaca fatiada, lá pelos anos 1990. Virou nome cobiçado, continuou produzindo obras exatamente no mesmo estilo chocante da vaca e viu seu preço alcançar cifras de Picasso. Assim, não teve problemas em vender um bezerro de ouro e outras 222 obras a US$ 200,7 milhões na casa de leilão londrina. Fez tudo sem a participação da galeria que o representa e levou o lucro sozinho. Quem comprou, comprou antes de qualquer coisa o nome Damien Hirst e o prestígio que vem com ele. E depois, um bezerro de ouro e outras cafonices. É de tais fenômenos que Frank Wynne trata na entrevista abaixo e que o levou a escrever Eu fui Vermeer. Esse post é longo, mas os trechos e a entrevista valem como reflexão sobre esse mercado que faz e desfaz mitos.

 O que mudou no mundo da falsificação desde a época em que Van Meergeren pintou os Vermeers?A primeira coisa que mudou depois da confissão de Van Meegeren foi o número de Vermeer autênticos, que foi drasticamente revisado caindo de 65 para os 35 considerados verdadeiros hoje. Apesar de ser quase certo que Vermeer pintou muitas outras obras (pelo menos 90 foram vendidas logo depois de sua morte), o caso Van Meegeren significou que será quase impossível para num “novo Vermeer”, se descoberto, ser autenticado com segurança. Quando à maneira como os marchands e galerias funcionam, pouca coisa mudou: ainda é raro uma pintura ou obra de arte ser submetida a testes científicos. Grande parte das autenticações ainda repousam na palavra de um ou dois experts. E a falsificação não diminuiu. Há mais fraudadores produzindo mais fraudes nos últimos 40 anos do que em qualquer outro período da história. O que ainda me fascina é isso porque o mercado de arte é inteiramente baseado na confiança. Se o comprador não confiar na opinião do expert fica impossível comprar e vender arte, o que significa que, para se salvar do constangimento e para proteger o vínculo de confiança, marchands e galeristas sempre tomam cuidado de subestimar ou minimizar as fraudes – desse modo fica mais fácil para os falsificadores.

 

 Pode-se dizer que era mais fácil falsificar na época de Van Meegeren?Não. Esse é um erro comum. As pessoas costumam dizer que Van Meegeren conseguiu falsificar com sucesso porque havia a Segunda Guerra e era muito difícil autenticar pinturas na época. Mas não é verdade. Os nazistas tinham centenas de experts à disposição. Há muitos testes disponíveis hoje que não existiam na época, mas a maioria das pinturas não era submetida a testes de análise científica. As últimas duas décadas viram alguns dos mais bem sucedidos falsários da história. John Myatt (na Grã Bretanha) e Geert Jan Jansen (Holanda) ganharam de Van Meegeren e tornaram insignificante sua contribuição de sete falsificações – cada um deles contribuiu com centenas. Keating e Jan Jansen fizeram milhares de falsificações para coleções públicas e privadas antes de serem descobertos. E algumas autenticadas não somente por críticos mas pelos artistas que as teriam pintado.

 

O que o mercado atual de arte contemporânea tem a aprender com o caso Meegeren?O que o mercado de arte deveria ensinar é “compre somente o que você gosta”. Se você realmente ama uma pintura ou escultura, então ela vai te pagar com anos de prazer. Mas o mercado de arte agora (muito mais que nos anos 1940) trata arte como investimento. Se for autêntico e raro, então tem valor. Isso significa que mesmo um Picasso muito ruim (e há vários) valerá sempre mais que o mais magnífico Max Ernst. O que o mercado de arte também deveria ter aprendido é “nunca confie unicamente nos seus instintos”. A não ser (e somente se) uma obra de arte tem todos os documentos traçando o trajeto entre o artista e a galeria. Mas mesmo assim desconfie. De qualquer forma, sempre vemos em um trabalho o que queremos ver. E marchands e galerias podem ficar cegos pela tríade “necessidade, velocidade e ganância”. A necessidade de comprar uma obra de arte feita por um artista, a velocidade, pois assim eles podem comprar antes de qualquer outra pessoa e a ganância porque o preço parece bom.

1 comentário

Arquivado em Arte

Umidade literária

 

Foto: Brisolara

“Eu, que vivo no gasômetro, tenho tomado distância de tudo o que é sólido. À margem das formas, sou reservatório de coisas desfeitas. É meu rosto líquido que vejo na poça de chuva esquecida pela terra sob minha janela, rosto de quem quis infinitamente comprimir os fluidos da vida na esperança de guardá-la. No gasômetro as coisas não são sólidas, mas custam a passar. Hoje um grito de criança, sumido da varanda em meu passado, veio vibrar sobre o telhado como o canto de uma ave vindo agonizar no ninho antes de morrer; ontem, foi um pardal que desceu na água.”

 Satolep (CosacNaify) é o segundo livro do gaúcho Vitor Ramil, mais conhecido pela música do que pela literatura. Assim como as composições escritas por Ramil, seu romance evoca o sul. Satolep é uma cidade perdida no meio da umidade intensa típica do extremo sul do Brasil. O clima tem sua importância na narrativa de Ramil. O tempo, a neblina, o sol e a cerração atuam de forma definitiva nos personagens. Ramil não dá nome ao protagonista, mas dá a este uma história misteriosa. A figura desembarca em Satolep em busca da própria alma perdida na adolescência, quando trocou a cidade natal por uma metrópole qualquer. As referências autobiográficas são evidentes e o autor não as evita. Tal qual seu protagonista, Ramil deixou sua Pelotas natal na adolescência rumo a Porto Alegre. Voltou, coincidentemente, com a mesma idade do personagem. E Satolep é Pelotas lida de trás pra frente. Ramil começou a escrever o livro depois de se encantar com fotografias da cidade feitas na década de 1920. Para cada imagem escrevia um texto, até que deu liga e do exercício saiu um romance. Parte das fotos antigas foram extraídas do álbum para ilustrar o livro. Levam a assinatura de Brisolara, um fotógrafo cuja história ninguém sabe ao certo. Abaixo, Ramil fala sobre Satolep.

 “Nasci em Pelotas e saí com 17 anos. Fui para Porto Alegre e, cinco anos depois, para o Rio. Depois voltei para cá (Pelotas) não saí mais. Estava começando a escrever meu primeiro romance, tinha feito o disco Ramilnonga e era um grande risco voltar para o interior, mas foi a coisa mais acertada que fiz.”

“Eu tinha comigo um álbum de Pelotas feito em 1922 e um dia resolvi escrever para as fotos uma pequena ficção e passei a escrever para várias fotos. E uma das pequenas histórias cresceu e foi aos poucos transformada em romance.”

“Não há no livro uma intenção consciente de contar minha história, minha volta (a Pelotas). Quando me dei conta que tinha voltado para cá com a idade do meu personagem já estava com livro na metade. Talvez o que tenha de meu são algumas questões bem pontuais e alguns comentários sobre música e estética do frio.”

“Tem uma questão que acabo usando que é o João Simões Lopes Neto como espécie de mestre do meu personagem. Leitor nunca sabe o nome dele porque é um livro sobre a complexidade de saber quem a gente é, como lidar com isso, como lidar com a formação da gente na família, na sociedade.”

1 comentário

Arquivado em Romance

Um romance para Biafra

Foto: C. Carwile

“Quando o Patrão voltou para casa, Ugwu estava sentado no chão da sala, com as costas na parede. Olanna comia uma fatia de bolo, num pires. Ainda estava com o vestido de noiva; a camisa de Okeoma for a bem dobrada e estava sobre uma poltrona. Os convidados haviam saído devagar, dizendo pouca coisa, as fisionomias sombreadas de culpa, como se constrangidos de terem deixado o reide aéreo arruinar o casamento.”

Chimamanda Ngozi Adichie nasceu na Nigéria, é de etnia igbo e perdeu os avós na guerra de Biafra. Mora nos Estados Unidos desde a adolescência e foi lá que escreveu Meio sol amarelo (Companhia das Letras), publicado em 2006 nos países de língua inglesa e este ano por aqui. O romance segue a história de uma família de classe média durante a guerra que dividiu a Nigéria e instituiu a República de Biafra. Entre 1967 e 1970, milhares de igbos fugiram do território nigeriano e se instalaram em Biafra, que nunca foi reconhecida pelas grandes potências e amargou uma fome cujas imagens invadiram o mundo. A figura central do romance de Chimamanda é Ugwu, um menino pobre contratado por um professor universitário para cuidar dos afazeres domésticos. Meio sol amarelo fala das mazelas da África e suas guerras tribais, embora não seja este o foco de Chimamanda. A autora quer mostrar que há uma África além da propaganda do hemisfério norte, além das fotografias em preto e branco que ganham prêmios e dos relatos do repórter belga da CNN. Em Meio sol amarelo, duas irmãs gêmeas de família rica resolvem ficar em Biafra quando a guerra estoura. Os desastres das batalhas estão no livro, mas Chimamanda não faz sensacionalismo. O conflito de seus personagens está em manter a sanidade e uma certa moral em meio à degradação. E, sobretudo, a identidade. Vale como relato histórico. A autora tem 31 anos e não viveu a guerra, mas se ancorou nas narrativas da família e de amigos para construir Meio sol amarelo, um bom exemplar de literatura da África não-lusófona. Em julho último Chimamanda participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Teve como companhia no palco da festa os angolanos Pepetela e José Eduardo Agualusa e contou ao público que não acredita na missão política do escritor, embora não possa deixar de enxergar seus livros como romances fatalmente políticos. A autora escreveu também Purple hibiscus, inédito no Brasil, e agora participa de um livro para comemorar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A publicação terá textos de 12 autores, gente como Gabriel Garcia Marquez , Naguib Mahfouz (morto em 2006) e José Saramago. A foto acima é de Enugu, capital do estado de Enugu.

2 Comentários

Arquivado em Romance